Por Cácio Silva, Cassiano Luz, Edward M Luz e Ronaldo Lidório

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A simples presença missionária entre povos indígenas suscita em alguns um sentimento de rejeição, que advém de um emaranhado de impressões e fatos históricos em relação à atuação missionária indígena desde a colonização relembrando uma Igreja que estava a serviço dos interesses políticos, imperialistas e colonizadores. Em outros o sentimento é de suspeição, debaixo do pressuposto de que qualquer atuação missionária é nociva à preservação cultural indígena. Perante este contexto, e sobretudo para aqueles que se embutem de rejeição ou suspeição, desejamos expor fatos sociais, culturais e históricos que poderão mostrar com clareza que a presença missionária evangélica entre povos indígenas está hoje associada a um crescente processo de colaboração com a preservação lingüística e cultural dos povos do Brasil, além de mostrar-se ativamente interessada em participar do despertar indígena que busca seu lugar neste grande país.

A presente realidade cultural indígena em relação aos processos de mudança social

Tornou-se rotineira a veiculação de notícias sobre indígenas brasileiros ingressando em cursos superiores, formando-se advogados, enfermeiros, ambientalistas, dentre muitas outras profissões, galgando novos patamares de protagonismo, empreendedorismo e agenciamento na sociedade nacional. Alguns grupos e indivíduos participam ativamente da economia local e até internacional. Cada vez em maior número e força as sociedades indígenas e seus indivíduos influenciam ativamente a política local, desejando ansiosamente participar da construção de leis e atividades que são de seu interesse e os afetam diretamente. Em algumas regiões do Brasil a participação indígena pode mudar os rumos das eleições municipais.  Muitos indígenas podem e usufruem dos benefícios sociais garantidos constitucionalmente, oferecidos pelas três instâncias da administração executiva do país. Do Governo Federal vêm auxílios e bolsas, tais como Auxílio Maternidade, Bolsa Família, aposentadorias e salários, além das atividades praticadas pelos dois órgãos de auxílio indígena federais: a FUNAI (Fundação Nacional do Índio) e FUNASA (Fundação Nacional da Saúde). Dos governos Estaduais e Municipais, vêm projetos desenvolvimentistas, apoio para projetos locais, além da educação e saúde, operacionalizados na esfera municipal. O universo indígena brasileiro está em franca transformação social por diversos motivos e poucas etnias continuam alheias a este processo. Tais motivos são muito menos religiosos (evangelização) e muito mais sociais e políticos, ou seja, o poder de influência e atração da sociedade brasileira não indígena bem como as políticas públicas do governo do nosso país provendo educação, saúde e bem estar, gerando nas etnias indígenas expectativas cada vez mais associadas ao universo não indígena. Qualquer contato, seja motivado pelo interesse econômico, político, governamental ou religioso, pode ser potencialmente revolucionário para as sociedades indígenas.

É fácil constatar tal realidade de transformação sociocultural e dissociá-la das ações missionárias, em grande parte. Para isto basta observar as vastas áreas indígenas sem presença missionária onde tais processos de transformação transcorrem com grande velocidade, sempre atrelados à atração que pequenos vilarejos ou cidades exercem sobre os povos indígenas, ou às políticas públicas que se propõe a levar bem estar e, consequentente conduzem também padrões socioculturais alienígenas ao universo indígena. Não são poucas as etnias  migrando do interior da mata para a beira dos grandes rios a fim de terem acesso ao escambo promovido por barcos-comércios bem como à educação e saúde em pólos mais próximos aos centros urbanos ou em urbanização. É certo concluir que, a medida que o indígena se aproxima de um contexto distinto e urbanizado, ele se insere em um ambiente onde é facilmente descriminado por não se adequar às exigências sociais locais gerando, assim, um misto de frustração em relação ao meio e anseio por encontrar uma medida de concordância entre ser índio ao mesmo tempo em que possa ser respeitado e usufruir do novo que julga bom. Este estado de transição no qual a maior parte das etnias brasileiras se encontra é, certamente, um dos problemas mais graves e complexos observados, e não há fácil resposta. Há iniciativas integracionistas, outras preservacionistas e ainda as que segregam socialmente os indígenas. Porém todas concordam que a presente realidade de transição é complexa e com graves conseqüências culturais para os povos do Brasil. Junto a isto se soma o fato de que se lida, no Brasil e em toda a América do Sul, com uma vasta diversidade lingüística e cultural entre os grupos indígenas. O próprio termo indígena é resultado de nosso simplismo ao imaginarmos um grupo homogêneo, com anseios e necessidades também semelhantes. É preciso relembrar que as mais de 250 etnias indígenas brasileiras formam, assim, um universo pulverizado e heterogêneo, lingüística, cultural e socialmente.

Se por um lado estes processos nos preocupam, por outro devem nos levar a refletir sobre as escolhas iniciadas pela maioria dos grupos indígenas, o que buscam e quais seus anseios. Todos os principais teóricos da antropologia afirmaram, em maior ou menos escala, o pressuposto das mudanças culturais. Para muitos destes, a mudança cultural é um fenômeno natural e previsível, um processo inerente à dinâmica essencial das culturas humanas, podendo ocorrer como reações e reajustes endógenos e/ou por motivações exógenas, geralmente advindas do contato intercultural, marcadas ou não por pressões e imposições externas. As trocas interculturais são, portanto, um processo comum e importante na medida em que alargam os horizontes da compreensão humana, as possibilidades de atuação econômica e produtiva, e possibilitam que os membros de uma sociedade repensem sua organização social, seus tabus, interditos e preconceitos, e revejam seu modus vivendi. A história humana é repleta de exemplos de grupos humanos que cresceram, progrediram e multiplicaram-se após ajustes sociais advindos de mudanças culturais, quer motivadas pela reflexão interna e endógena, quer pelo contato com indivíduos de outras sociedades. A dinâmica cultural é um dado fundamental para toda e qualquer sociedade, e sinal de que a cultura está viva e gozando de plena saúde. Isto nos faz pensar sobre a postura do mundo não indígena em relação ao indígena concernente ao respeito às suas escolhas, decisões e questionamentos.

Percebemos assim, que:

Ø O universo indígena é heterogêneo, sendo formado por uma grande diversidade cultural e lingüística. A realidade de um grupo indígena não é a realidade de todos, bem como sua jornada. O universo indígena é formado tanto pelos índios citadinos semi integrados ao ambiente não indígena, quanto pelos índios da floresta que desejam manter distância, e por um leque enorme de categorias entre estes dois pontos.

Ø As principais forças de transformação cultural entre os grupos indígenas do Brasil são a sociedade não indígena e as políticas públicas governamentais. Enquanto a primeira produz um poder de atração de forma não planejada e informal a segunda o faz por meio dos serviços que julga relevantes e necessários aos povos indígenas.

Ø A cultura humana é dinâmica provocando e sofrendo processos de mudanças. Seja por motivações internas ou a partir de trocas interculturais, cabe ao próprio grupo refletir sobre sua organização social, tabus e crenças. Cabe também ao próprio grupo promover, ou não, ajustes sociais que julguem de benefício humano.

A cultura e o evangelho

Nenhum elemento externo jamais deve ser imposto a uma cultura. Toda imposição pressupõe carência de respeito humano e cultural, além de grave erro na construção do diálogo. Assim, a catequese histórica e impositiva, bem como qualquer outro elemento que force a mudanças não desejadas, mesmo em áreas como educação, saúde e subsistência, devem ser duramente criticadas.

Por outro lado, é também respeito cultural conceber ao indígena o direito de realizar escolhas, voluntárias e desejadas, dentro de seu próprio bojo cultural. Para Roberto Cardoso a mudança é possível se percebida sua necessidade e deve ser processada no interior de uma comunidade intercultural de argumentação[1]. Ele se baseia no etno-desenvolvimento que, na declaração de San José (1981) é “o fortalecimento da capacidade autônoma de decisão de uma sociedade culturalmente diferenciada para orientar seu próprio desenvolvimento e o exercício da autodeterminação”.

Rouanet expõe que “o homem não pode viver fora da cultura, mas ela não é seu destino, e sim um meio para sua liberdade. Levar a sério a cultura não significa sacralizá-la e sim permitir que a exigência de problematização inerente à comunicação que se dá na cultura se desenvolva até o telos do descentramento”[2]. Este argumento nos leva a compreender que os conflitos são universais, tais como a morte, o sofrimento, a discriminação ou a repressão. E perante estes conflitos podemos compartilhar a mútua experimentação na busca de soluções internas.

As chamadas mudanças culturais, em lugar de causar rápida rejeição, deve ser observada de forma mais íntegra, ou seja, se tais mudanças são voluntárias e desejadas. O machismo, na América Latina, embora seja cultural, é atacado e limitado por políticas públicas que vêem neste elemento cultural um dano ao próprio homem e sociedade. O jeitinho brasileiro, que patrocina a corrupção e tolerância de pequenos delitos, apesar de ser resultante de elementos também culturais não deixa de ser compreendido como nocivo ao homem. Como tal não é aceito pela sociedade como desculpa para a continuidade de práticas danosas à vida. O mesmo poderíamos falar a respeito do racismo. Nestes três casos a universalidade ética é evocada e aceita de forma geral pela sociedade e os direitos humanos são reconhecidos. Porque que não no caso de elementos culturais nocivos à vida, em contexto indígena?

O fato é que a aproximação e conhecimento do evangelho e valores bíblico-cristãos contribui para uma reflexão interna em algumas sociedades indígenas gerando mudanças voluntárias e desejadas. Se as culturas são móveis e mutáveis, porque as mudanças provocadas a partir do conhecimento dos valores cristãos e do evangelho despertam tantas e tão violentas reações quando se trata de culturas indígenas?

Quando as motivações missionárias são questionadas, em sua relação com as sociedades indígenas, há de se notar clara discriminação. Há iniciativas particulares e governamentais junto às sociedades indígenas conduzidas pelas mais diversas motivações como a política, financeira e humanista. A iniciativa missionária evangélica possui como principal motivação valores cristãos como o amor ao próximo, a solidariedade humana e o evangelho e, devido a isto, sente-se freqüentemente discriminada, como se a motivação religiosa fosse menos digna que a política. Precisamos rever nossos pressupostos.

Há grave diferença entre a catequese e a evangelização. Todo cristão, sincero e convicto de sua fé, tem ou deveria ter o desejo de compartilhar aquilo que tem de mais precioso em seu ser e sua cultura, qual seja, a sua fé e as verdades do evangelho, uma baseada e construtora da outra. Tal compartilhar, quando em um ambiente em que o mesmo é desejado pelo receptor, não oprime a cultura, ao contrário promove diálogo e reflexão.

Esta evangelização difere-se da catequese em relação ao conteúdo, abordagem e comunicação. O conteúdo da catequese é a Igreja, com seus símbolos, estrutura e práticas, sua eclesiologia.  O conteúdo da evangelização é o evangelho, os valores cristãos centrados em Jesus Cristo. A abordagem da catequese é impositiva e coercitiva. A abordagem da evangelização é dialógica e expositiva. A catequese se comunica a partir dos códigos do transmissor, sua língua e seus costumes importando e enraizando valores. A evangelização se dá com a utilização dos códigos do receptor, sua língua, cultura e ambiente, respeitando os valores locais e contextualizando a mensagem.

A influência intencional do movimento missionário evangélico orientado pela AMTB (Associação de Missões Transculturais Brasileiras) possui alvos de forte colaboração com a preservação cultural, social e lingüística das sociedades indígenas de nosso País, tais como:

– Contribuir para que o indígena valorize e permaneça em sua própria terra natal (sua homeland) evitando migrações tempestivas e com conseqüência social negativa para as beiras dos grandes rios, centros em urbanização ou urbanizados.

– Colaborar para que haja um bom programa de educação na própria língua materna, valorizando-a e possibilitando que seus fatos históricos e sociais sejam por eles registrados, preservados e transmitidos perante este contexto de rápida influência social externa que não raramente invalida o valor da língua materna para um grupo.

– Colaborar para que haja programas em áreas vitais, como a saúde, que responda às necessidades essenciais dos grupos indígenas.

– Contribuir para que, em processos  já em andamento de integração com a sociedade não indígena, colaborar com os mecanismos de valorização étnica, cultural e lingüística, a fim de que o grupo não seja diluído perante a sociedade maior. Também colaborar com o grupo em sua busca por uma convivência digna com outros, quando fora da sua terra natal.

Em uma observação imparcial, destituída de pressupostos discriminatórios quanto à evangelização, perceberíamos que diversas sociedades indígenas que mantém um relacionamento mais próximo com missionários evangélicos valorizam mais sua própria cultura e língua do que no passado.

Não podemos negar que a postura antropológica brasileira, não intervencionista, é influenciada também pela culpa coletiva pelo passado, pela forma desastrosa como os indígenas foram julgados e condenados. Postura semelhante se viu na Alemanha pós-nazista que, de uma xenofobia causticante, se extremou por algum tempo nos caminhos de uma tolerância radical ao diferente, qualquer diferente, mesmo o nocivo socialmente.

Aryon Rodrigues estima que, na época da conquista, eram faladas 1.273 línguas,[3] ou seja, perdemos 85% de nossa diversidade lingüística em 500 anos. Luciana Storto chama a atenção para o Estado de Rondônia, onde 65% das línguas estão seriamente em perigo por não serem mais aprendidas pelas crianças e por terem um ínfimo número de falantes. Precisamos perceber que a perda lingüística está associada a perdas culturais complexas, como a transmissão do conhecimento, formas artísticas, tradições orais, perspectivas ontológicas e cosmológicas.

Perante tal realidade somos levados a observar o passado e defender uma postura radicalmente não intervencionista, não dialógica, no presente. No subconsciente talvez estejamos tentando minimizar o risco de outros erros. Porém não percebemos que esta omissão apenas há de contribuir para a ausência de soluções de subsistência, seja numérica, lingüística ou cultural, dos povos indígenas do Brasil. Não devemos evitar o diálogo, mas sim a subversão. Não devemos nos omitir da busca coletiva pela solução de conflitos, mas sim evitar a imposição em reações que não sejam autônomas. Ao participar da construção do ambiente que gera o dano devemos também participar da busca pelas soluções.

Percebemos assim que:

Ø Toda imposição é nociva e desrespeitosa. Nenhum elemento deve ser imposto a uma sociedade, seja indígena ou não indígena, sob nenhum pressuposto.

Ø A cultura humana não é o destino do homem e sim seu meio de liberdade. É também respeito cultural conceber ao indígena o direito de realizar escolhas, voluntárias e desejadas, dentro de seu próprio bojo pessoal e social.

Ø As motivações missionárias evangélicas para o relacionamento com as sociedades indígenas devem ser igualmente respeitadas. Motivação religiosa não deve ser confundida com imposição religiosa.

Ø A evangelização difere-se da catequese em relação ao conteúdo, abordagem e comunicação. Cabe ao indígena mensurar o valor da evangelização, em seu ambiente e com total liberdade.


[1] Cardoso de Oliveira, Roberto. A questão Étnica: qual a possibilidade de uma ética global? Arizpe, Lourdes (Org.). As Dimensões Culturais da Transformação Global: uma abordagem antropológica. Brasília. UNESCO, 2001.

[2] Rouanet, Sergio Paulo. Artigo: Ética e antropóloga. Revista Estudos Avançados. Edição 10, set./dez 1990.

[3] Rodrigues, Aryon. Línguas indígenas — 500 anos de descobertas e perdas.